2022 representa um marco simbólico na evolução do cenário estratégico mundial. Cristaliza-se o aprofundamento da rivalidade entre o eixo China – Rússia, cuja aliança tem se tornado mais sólida, e os Estados Unidos e potências ocidentais. Algumas tendências e fatos recentes mostram que o mundo entra em fase potencialmente desestabilizadora.
Os EUA e a OTAN têm aumentado o tom de sua retórica contra a China e em julho e agosto de 2022 parlamentares americanos viajaram oficialmente a Taiwan, destacando-se a visita da presidente da Câmara dos Deputados. Foram feitas declarações de apoio a Taiwan, que a China considera parte integrante de seu território, como sendo uma província rebelde. O fato de que os parlamentares não necessitam de autorização do Executivo dos EUA para missões no exterior é de difícil entendimento pelo monolítico sistema político chinês.
Anteriormente, em visita ao Japão, o presidente americano, indagado pela imprensa se os Estados Unidos defenderiam militarmente Taiwan em caso de uma ofensiva da China, respondeu afirmativamente, o que teve grande repercussão pois os americanos têm adotado uma política de ambiguidade estratégica. Ou seja, os EUA fornecem armas para a defesa da ilha, mas não se comprometem a defendê-la militarmente com o envio de tropas. A visita de delegações parlamentares americanas a Taiwan provocou imediata reação da China que passou a realizar intensos exercícios militares em volta da ilha, inclusive com a utilização de tiros reais.
Os EUA reagiram enviando duas belonaves para trafegar pelo estreito de Taiwan. Embora exercícios militares de ambas as partes sejam rotineiros na área, e inegável que agora o nível de tensão está muito elevado, assim como o risco de uma confrontação direta, mesmo acidental. Recorde-se que os chineses, além de seu crescimento econômico e tecnológico, têm aumentado seu poderio bélico, e no mês de julho foi lançado seu terceiro porta aviões, aumentando sua capacidade de projeção internacional de poder. Do ponto de vista econômico, registre-se a grande importância de Taiwan como produtor de semicondutores.
Outros fatores de tensão no cenário internacional dizem respeito à continuação da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que já dura seis meses e parece estar em um impasse. 0 Governo russo, que tem conseguido evitar que as sanções prejudiquem fortemente sua economia, anunciou, em agosto, um exponencial aumento de homens em armas nas suas forças militares.
O único alívio nas consequências internacionais da situação bélica na Europa foi o acordo patrocinado pela Turquia e pela ONU para liberar a exportação de grãos pela Ucrânia por via marítima. Continuam a instabilidade nos mercados internacionais, os problemas nas cadeias produtivas, a inflação global que tem levado a protestos em países mais vulneráveis. A Europa, além da insegurança de estar próxima do teatro de operações, e sofrer com a inflação, tem a perspectiva de graves dificuldades no fornecimento de combustível no próximo inverno, por causa de sua dependência da Rússia.
Os Estados Unidos, depois do interregno isolacionista do governo passado, tem adotado uma postura intervencionista e até mesmo desafiadora nas relações internacionais. Como exemplos temos a retomada do pivot para a Ásia, o pacto Aukus com o Reino Unido e a Austrália, a opaca reunião da Cúpula das Américas que mostrou a queda de sua influência na América Latina, o aumento das pressões contra o Irã, e o crescente fornecimento de armas para a Ucrânia. São atitudes que mostram impulso de retomar protagonismo nos negócios internacionais, em contraposição ao crescimento da presença do eixo sino-russo. Esse eixo, que esteve presente durante toda a Guerra Fria foi motivo de preocupação dos Estados Unidos em 1972 quando o presidente americano realizou viagem à China visando a colocar uma cunha na solidez do bloco comunista de então. Atualmente, está claro que os EUA estão contribuindo para uma proximidade crescente entre a China e a Rússia.
Embora não se possa subestimar a capacidade econômica, tecnológica e bélica dos EUA, sua atitude cada vez mais desafiadora em relação à aliança sino-russa, e a busca de retomada de protagonismo global americano, coloca a questão da possibilidade de os Estados Unidos estarem caminhando para exceder (overstretch) sua capacidade além do razoável, ao antagonizar, ao mesmo tempo, uma superpotência econômica e um pais com a capacidade militar russa, além de buscar a continuidade de sua hegemonia global. A disputa entre os EUA e o bloco composto pela então URSS e a China existiu durante toda a Guerra Fria, mas naquele período histórico a China ainda não era a superpotência econômica em que se transformou. A então União Soviética, embora tivesse capacidade bélica, tinha economia fraca e pouco eficiente.
Uma estratégia racional seria, em lugar de atitude de rivalidade exacerbada em relação à China, adotar posição cooperativa, tentando atrai-la para integração. A base para essa iniciativa seria a já existente simbiose entre as duas maiores economias do mundo. Os chineses detêm enormes reservas aplicadas em títulos do Governo americano e os investimentos norte-americanos na China são enormes, além do significativo comércio bilateral.
Na ocasião da derrocada da União Soviética e do fim da Guerra Fria, com a Rússia extremamente fragilizada de então, houve oportunidade para que os Estados Unidos e as potências aliadas atraíssem a Rússia para o sistema ocidental, integrando-a na economia do Ocidente, a exemplo do que foi feito ao final da Segunda Guerra com o Japão, a Alemanha, a Itália. Em processo chamado de reversão das alianças, e com a utilização do plano Marshall de ajuda, os Estados Unidos transformaram os antigos inimigos em aliados e os integraram no bloco ocidental.
A oportunidade histórica do desmantelamento russo do começo da década de 1990 perdeu-se e preferiu-se manter a Rússia distante, além de se promover a expansão da OTAN, o que aumentou a sensação russa de cerco, que existe desde os tempos imperiais. Essa situação favoreceu o caldo de cultura que propiciou o crescimento do nacionalismo russo e da ideologia nostálgica dos tempos de glória do Império e da União Soviética, respeitada e tratada em termos de igualdade pelas grandes potências ocidentais.
Embora a China já seja um país quase em paridade econômica com os EUA, cabe especular se ainda se sentiria atraída por movimento ocidental de atração, que lhe permitisse elevar a prosperidade e o padrão de vida de sua população por meio de maior conexão com as economias ocidentais. Deve-se notar que a liderança chinesa e extremamente pragmática e dificilmente deixaria de aproveitar essa oportunidade.