Como a Rússia usa narrativas de internet para minar a confiança mundial na Ucrânia

Desde o início da invasão russa da Ucrânia, o governo ucraniano alega que a Rússia usa information warfare para ajudar em seus esforços de guerra. Embora seja sabido que os russos realmente têm essa expertise, é difícil confiar na informação vinda justamente de quem é a vítima. Quanto disso é verídico e quanto é uma retributiva em novas narrativas?

No final do mês passado, o Atlantic Council, organização independente que monitora o ambiente digital, lançou o primeiro relatório explicando como as narrativas russas de internet são utilizadas como armas de guerra.

Obviamente não podemos perder de vista que a Ucrânia também opera em contra-ataques. O país também tem experts nesse tema. Mas a defesa pode não ser tão efetiva quanto o ataque, que é sofisticado.

Quando falamos em guerra de desinformação, podemos ter a falsa ideia de disputa pela verdade ou proliferação de mentiras. É algo mais sofisticado, a tentativa de impor narrativas que maculem a imagem do alvo, dificultando a tarefa de amalgamar aliados. Isso funciona constrangendo potenciais aliados com essa narrativa.

O report do Atlantic Council é abrangente, mostra como a Rússia prepara há anos o cenário ideal para que a Ucrânia não seja vista como parceiro confiável.

São operações que misturam as redes sociais tradicionais, usando perfis de influencers russos e robôs, com ações de mídia convencional. Essas últimas chegaram até o Brasil recentemente, no episódio em que o nome do presidente Lula foi cogitado como negociador da paz.

O report divide as ações em dois períodos. O primeiro é o de sedimentar um terreno, ocorrido entre 2014 e 2021. O segundo é o da preparação nos 70 dias que antecedem a invasão do território ucraniano.

O início das operações em 2014 foi descrito pela primeira vez no livro “War in 140 Characters”, do jornalista David Patrikarakos. Ele relata episódios impressionantes na guerra da Criméia. Houve ocasião em que cidades inteiras comentavam um ataque sem que ele jamais tivesse ocorrido. Os rumores foram, no entanto, bastante efetivos para esvaziar completamente algumas áreas.

Na primeira fase, eram três mensagens centrais:

  • A formação do exército e dos voluntários ucranianos é brutal.
  • A Ucrânia se tornou um Estado falido depois que passou a seguir a Europa.
  • Ucranianos são nazistas.

Talvez você concorde parcialmente com as afirmações. E aí é que está o pulo do gato das operações de desinformação. Elas nunca são mentiras complexas, são uma fraude de contexto.

Por exemplo, a Ucrânia tem sim problemas sérios com neonazistas. Aliás, esse é um problema que existe também na Rússia e no mundo todo. Aqui no Brasil, inclusive, temos uma proliferação gigantesca de grupos neonazistas nos últimos anos. Isso tudo, no entanto, é muito diferente de colocar a Ucrânia como foco do nazismo como se estivéssemos falando do próprio Hitler. Essa distorção tem como objetivo justificar a invasão como único meio de conter um mal maior.

Nos 70 dias que antecederam a invasão, a desinformação partiu para o objetivo de dificultar a confiança de eventuais aliados que a Ucrânia pudesse ter. As mensagens centrais, após análise de mais de 10 mil artigos em 14 meios pró-Kremlin, foram:

  • A Rússia está buscando pela paz.
  • A Rússia tem a obrigação moral de fazer algo pela segurança da região.
  • A Ucrânia é agressiva.
  • O ocidente está contribuindo para acirrar os ânimos na região.
  • A Ucrânia é um fantoche do ocidente.

Depois da invasão, todos os esforços passam a ser em minar a moral da defesa ucraniana. A ideia de que o exército russo é invencível e de que iria dizimar o país rapidamente acabou se espalhando. Um ano depois, o que parecia muito certo no início da guerra se mostrou bastante duvidoso.

Desinformação parece hoje um tema da comunicação e da política. Mas não é uma arte que nasce dessa forma. Ela começa na área militar e nos objetivos militares.

Não podemos negar que a Rússia é uma das maiores potências militares do planeta. Parece até meio ridículo que lance mão da internet quando tem poder de fogo efetivo. É que nós não usamos a internet como guerra. Na guerra, se há mais uma arma, ela será usada, como está sendo.

Existem alguns objetivos centrais nos esforços da guerra digital contra a Ucrânia:

  • Enfraquecer o apoio global ao esforço de guerra ucraniano;
  • Sabotar a fibra moral da Ucrânia;
  • Sabotar a imagem na Ucrânia como parceiro confiável;
  • Diminuir a empatia pelo povo ucraniano;
  • Dificultar a relação da Ucrânia com os países vizinhos;
  • Diminuir o apoio financeiro e ajuda militar.

Obviamente, a guerra não é só virtual e essa ações não são suficientes para uma vitória. Elas fazem, no entanto, diferença sobre os confrontos reais no campo de batalha. Enfraquecer o oponente é uma ferramenta importante nos esforços russos de guerra.

Recentemente, vimos o Brasil ser utilizado como fantoche nessa empreitada russa. O presidente Lula já havia manifestado a intenção de mediar a paz. Chegou a proferir declarações como “quando um não quer, dois não brigam” para se referir a uma invasão territorial com violações gravíssimas de direitos humanos.

O Kremlin obviamente identificou que havia interesses específicos e internos do governo brasileiro. Construir a imagem de grande líder internacional é algo que está no radar do governo Lula. A Rússia se aproveitou disso para reforçar a narrativa de que está em busca de paz.

O vice-ministro das relações exteriores deu uma longa entrevista a um órgão oficial de informação da Rússia em que cita o Brasil e fala nominalmente do presidente Lula.

Na versão traduzida em inglês, aquela que foi loucamente reproduzida pela imprensa mundial, o governo Putin estaria disposto a aceitar a mediação com a Ucrânia oferecida por Lula. Só que essa não era a declaração completa. Havia outra parte gigantesca, que foi publicada só em russo.

Nesse texto, o vice-ministro diz que aceita os esforços para a “desnazificação” da Ucrânia e que as negociações só seriam possíveis caso todas as armas do país e de seus aliados fossem depostas. Diz também que, se alguma negociação de paz tem de ser feita, ela deve começar pelo ocidente, que provoca a Rússia.

É na dissonância cognitiva que a desinformação se estabelece. O interesse de Putin é reforçar internamente a ideia de que ele tem muitos aliados na invasão da Ucrânia e de que seu inimigo não tem tanto apoio assim.

Para os russos e aliados nos balcãs, que tiveram acesso à declaração completa, fica parecendo que o Brasil concorda com toda essa história. O governo brasileiro jamais concordou com isso.

Havia interesse do governo Lula em se posicionar como grande player internacional, por isso a declaração cortada, só a parte da mediação, foi respondida favoravelmente e amplificada. A imprensa brasileira chegou até a cogitar que Lula tinha um plano completo de pacificação, o que jamais foi dito nem pelo governo nem pelo Kremlin.

Quando essas notícias, reverberadas no ocidente, são introjetadas no noticiário dos balcãs, o imaginário das pessoas está contaminado. Elas creem que a mediação proposta é nos termos que elas souberam, incluindo deposição de armas e “desnazificação” da Ucrânia.

Isso serve para fazer parecer que a invasão, repudiada formalmente pelo Brasil em voto na ONU, tem mais apoios do que realmente tem. Somamos a isso a reputação de neutralidade da diplomacia brasileira e temos a narrativa completa. A neutralidade é apoiar esforços russos.

O interessante é que isso jamais é dito textualmente, então temos a negação plausível. A Rússia pode alegar que jamais declarou ter apoio do Brasil e nunca disse que neutralidade é invadir a Ucrânia.

Mas grande parte das pessoas que poderiam internamente começar a se colocar contra os esforços da invasão acabam ficando reticentes diante da movimentação. Isso também interfere na geopolítica local, no posicionamento de governos dos países mais envolvidos no conflito.

Quem está ganhando a guerra de informação? O report do Atlantic Council diz que, até o momento, os esforços da Ucrânia rendem uma vitória nesse campo de batalha. Mas há uma ponderação: “não há guerra de informação monolítica na qual descrições como ‘ganhar’ e ‘perder’ fornecem muita clareza ou nuance, particularmente quando vistos em escala global”.

O report prevê que a Rússia irá investir ainda mais em desinformação e narrativas digitais nas fases subsequentes da guerra. Obviamente a Ucrânia irá resistir. Resta saber quanto tempo vamos levar para entender como essas operações funcionam e o real impacto delas em um conflito.

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