Rivalidade Tecnológica China-Estados Unidos

I.

Dissipam-se céleres no retrovisor da história as esperanças que os Estados Unidos e seus aliados ocidentais depositaram no ascenso econômico da China como prenúncio de sua integração harmoniosa na ordem mundial liberal e — quem sabe até — da transformação democrática do regime comunista no país mais populoso do planeta, em consequência desse engajamento.

Agora, a recente condução de Xi Jinping a um inédito terceiro mandato como secretário-geral do Partido Comunista da China (PCC) e, a partir de março próximo, também como presidente da república, a consolidação do seu poder político, militar e econômicas absoluto não deixa dúvidas quanto à intensificação da rivalidade estratégica entre o “Império do Meio” e o colosso americano. O “Sonho Chinês de Rejuvenescimento Nacional”, preconizado por Xi, traduz seu projeto de deslocar os Estados Unidos do posto de primeira superpotência mundial e reescrever, em moldes sinocêntricos, as regras do jogo das relações internacionais patrocinadas pela liderança da América desde o fim da Segunda Guerra e especialmente depois do término da Guerra Fria.

A conquista de autonomia e dominância num amplo espectro tecnológico — semicondutores, inteligência artificial, computação quântica, aprendizado de máquinas, big data, 5G, energia, biotecnologia, engenharia nuclear, ciência aeroespacial etc — está no âmago do grande desígnio chinês. A bem da verdade, a cúpula do PCC nunca deixou de se preocupar com emular a impressionante capacidade da América para converter sua superioridade científico-tecnológica em primazia econômica e supremacia militar.

Se, até o presente, os gigantescos investimentos americanos na indústria chinesa e as maciças exportações desta ao mercado dos Estados Unidos exibem um grau superlativo de dependência mútua (755,6 bilhões de dólares em mercadorias e serviços vendidos pela China aos Estados Unidos, em 2021, e 149,2 bilhões em mercadorias americanas exportadas para a China no mesmo período, o que faz desta o terceiro maior exportador aos Estados Unidos, atrás somente de Canadá e México, membros do USMCA, antiga Nafta), doravante as perspectivas apontam para uma ampla e recíproca “desacoplagem tecnológica”, expressão cada vez mais usada por think tanks, empresários, burocratas, militares e políticos dos dois lados da ‘cortina de bambu’.

E, nos Estados Unidos, o debate coloca em campos opostos os defensores de uma abordagem altamente restritiva, reivindicando um arrocho nos atuais controles sobre exportações tecnologicamente ‘sensíveis’ e também sobre outros meios mais ‘sutis’ utilizados pela China em busca dessas tecnologias; e aqueles que preconizam um enfoque mais seletivo, combinando medidas de incentivo que consolidem a dianteira americana com medidas de controle bem calibradas. A rivalidade sino-americana está preocupando o mundo inteiro, forçando realinhamentos globais e esquenta a disputa pelo destino de Taiwan: empresa TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Corporation) é a maior produtora mundial de chips — os microalicerces da revolução industrial 4.0 —, exporta seus circuitos integrados para os Estados Unidos e a China e está situada a menos de 150 quilômetros do litoral chinês.

II.

A estratégia chinesa de “Fusão Civil-Militar” (FCM) é definida pelo PCC como a busca de dominância mundial para o Exército de Libertação Popular (ELP), as forças armadas chinesas, até 2049, centenário da proclamação da República Popular da China (RPC) por Mao Tsé-tung. O regime comunista decreta a eliminação das fronteiras entre os segmentos civis empresariais e de pesquisas científico-tecnológicas, de um lado, e as indústrias de defesa/equipamentos militares, de outro. Cabe lembrar que Xi Jinping comanda, no PCC, as poderosas Comissões Militar Central e Central de Desenvolvimento da Fusão Civil-Militar. A China se encontra três gerações atrás dos Estados Unidos em áreas como semicondutores e hardware, e o governo americano, é claro, pretende manter a atual assimetria.

O regime chinês, por meio da FCM, ambiciona virar o jogo através não somente dos seus esforços domésticos de pesquisa, desenvolvimento, inovação, mas também de expedientes ‘heterodoxos’ como a aquisição de tecnologia por transferência forçada de know how, o roubo puro e simples de propriedade intelectual e a espionagem industrial praticada por estudantes e cientistas chineses participantes de programas de intercâmbio com universidades e centros de pesquisa dos Estados Unidos. Xi e o alto-comando do ELP têm convicção de que a superioridade militar neste século caberá à potência que primeiramente for capaz de aplicar a inteligência artificial à guerra de nova geração. Essa preocupação é explicitada em um relevante documento de 2021 intitulado “Propostas do Comitê Central do PCC à Elaboração do 14° Plano Quinquenal para o Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e Objetivos de Longo Prazo para 2035”.

Pequim se ressente de que essas tecnologias-chave ainda sejam controladas pelo Ocidente capitalista, liberal e democrático e está certo de que os Estados Unidos investirão todo o seu poder/influência para bloquear cada vez mais o acesso da China a esses trampolins para o futuro. Mais adiante, vou mostrar que o receio americano de uma inversão de posições nessa competição econômica, tecnológica e militar é hoje o solitário ‘consenso bipartidário’ restante em Washington: as medidas começaram no segundo mandato de Barack Obama, intensificaram-se na administração Donald Trump e se aprofundaram no governo Joe Biden.

Enquanto isso, a China procura aproveitar ao máximo seus vínculos tecnológicos remanescentes com a América, o que, convenhamos, não é pouca coisa. O ambiente de ampla liberdade em que operam os grupos de interesse (lobbies) na maior democracia do mundo possibilita ao PCC instrumentalizar em proveito próprio a presença das maiores empresas de tecnologia do mundo, como a Qualcomm e a Intel, no mercado chinês, pressionando o governo americano a atenuar ou protelar suas restrições, em nome dos interesses do comércio exterior da América e da expansão das oportunidades de trabalho. Segundo relatório divulgado pelo Conselho Empresarial Estados Unidos-China, em 2020, o Oregon, maior estado exportador de chips criou 33.782 empregos, 7 mil a mais que em 2019.

A desacoplagem, pelo lado chinês, inclui contramedidas como: diversificação de fornecedore, a fim de diminuir a dependência das cadeias de suprimento americanas; crescentes investimentos do regime em pesquisa e desenvolvimento (sobretudo de chips); e incentivos a terceiros países desenvolvidos para que estabeleçam seus laboratórios e centros de produção na China, entre outras providências. O regime comunista sabe que tem mais a perder que os Estados Unidos com uma desacoplagem tecnológica demasiado rápida.

III.

Até o momento, a resposta dos Estados Unidos se baseia principalmente em restrições de acesso a tecnologias de uso dual (civil e militar), com ênfase em sanções contra empresas direta ou indiretamente ligadas ao complexo industrial-militar chinês. Essas normas são aplicadas por diferentes agências governamentais americanas, com autoridade para licenciar ou vetar iniciativas de negócios comerciais e financeiros: Pentágono (Departamento de Defesa), Departamento de Comércio e Departamento do Tesouro. O primeiro cumpre essa missão administrando as listas de Companhias Militares Chinesas (CMC, na sigla em inglês) e de Companhias Militares do Comunismo Chinês (CCMC). O segundo cuida, desde 2020, da lista de Uso Final Militar (MEU), reforçada, pouco tempo depois, pela lista de Uso Final da Inteligência Militar (MIEU); e o terceiro, da lista do Serviço de Controle de Ativos (OFAC) e, desde junho do ano passado, da lista Companhias do Complexo Industrial-Militar Chinês (CMIC).

É claro que todas essas e outras medidas fomentam a criatividade transgressora dos comunistas chineses. As entidades listadas reagem ao cerco normativo, passando a operar ‘abaixo do radar’ da burocracia americana mediante a multiplicação de subsidiárias de fachada e também explorando as brechas do labirinto legal e regulatório típico de uma democracia pluralista e descentralizada. Seguem alguns exemplos.

Em outubro de 2021, o Centro de Segurança e Tecnologias Emergentes da Universidade de Georgetown publicou estudo revelando que, de 273 fornecedores de equipamentos de inteligência artificial ao ELP (empresas privadas e estatais chinesas), somente 22 estavam nas listas referidas. Apenas no tocante a uma capacidade militar-chave (desenvolvimento de mísseis antinavio), a subsidiária da Corporação Chinesa de Ciência e Indústria Aeroespaciais responsável pelo programa não era listada. Conforme as regras do Executivo, o fato de uma empresa constar da lista do Tesouro não implica que suas subsidiárias tenham que ser automaticamente listadas. Até outubro de 2021, a lista MIEU, do Departamento de Comércio, incluía o Escritório de Inteligência do Estado-Maior Conjunto do ELP, mas deixava de fora a Força de Apoio Estratégico, também incumbida de funções de inteligência.

A empresa Xaomi beneficiou-se de uma liminar do Tribunal Federal do Distrito de Colúmbia que determinava que o Pentágono tinha deixado de identificar a companhia na lista CCMC, apesar de o departamento ter provado a participação da Xaomi no desenvolvimento de redes 5G e a concessão de um prêmio do governo chinês ao fundador da empresa. Em outra decisão judicial especiosa, a Leukong Technology lucrou com a demora do Tesouro em lhe aplicar restrições simplesmente porque o Pentágono grafara erroneamente o nome da empresa.

IV.

No campo de medidas proativas para a manutenção/ampliação da dianteira tecnológica dos Estados Unidos, a administração Biden, ao contrário do seu antecessor Republicano, tem boas relações com os gigantes empresariais do Vale do Silício, com forte presença no Conselho de Assessores Presidenciais em Ciência e Tecnologia. Em fevereiro deste ano, o Congresso aprovou a Lei de Criação de Oportunidades para a Primazia Tecnológica e Industrial (o “America COMPETES Act”), que destina cerca de 300 bilhões de dólares a pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), dos quais 52 bilhões são ‘carimbados’ para a indústria de semicondutores.

Também em contraste com o isolacionismo trumpista, o atual governo Democrata busca fortalecer alianças internacionais de modo a barrar a escalada tecnológica da China, em nome não apenas dos interesses econômicos e militares ocidentais, como também dos valores democráticos e direitos humanos. A administração Biden procura o apoio das outras quatro nações de língua inglesa que compõem a tradicional rede de inteligência dos “Five Eyes” (Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Reino Unido) e também dos países da União Europeia.

O governo americano deixa claro aos seus aliados que a preferência por empresas tecnológica chinesas como a Huawei compromete a continuidade do apoio fornecido pela inteligência e pelas forças armadas dos Estados Unidos. (De início, a Huawei entrou nas listas restritivas de Washington não por causa de suas conexões com o complexo industrial-militar de Pequim, mas sim por tentar driblar as sanções contra o regime teocrático do Irã. Mais sobre a Huawei no final deste artigo.) Entre as justificações do governo americano para vetar transferência de tecnologia, destacam-se as violações dos direitos da etnia islâmica uigur em Xinjiang, por meio de sistemas repressivos de reconhecimento facial, e a militarização do Mar da China Ocidental, que ameaça países vizinhos, como Vietnam e Filipinas.

Em junho de 2021, o Conselho Comercial e Tecnológico Estados Unidos-União Europeia definiu a cooperação entre a América e a UÉ como uma parceria em prol da transformação digital baseada em valores democráticos compartilhados. E, em fevereiro do ano passado, o China Strategy Group publicou o estudo “Competição Assimétrica: uma Estratégia [tecnológica] para [enfrentar] a China”, o qual sugere uma aliança “T-12” reunindo Alemanha, Austrália, Coreia do Sul, Estados Unidos, Finlândia, França, Índia, Israel, Japão, Países Baixos, Reino Unido e Suécia para uma padronização tecnológica baseada em valores democráticos.

V.

As múltiplas e sérias dificuldades enfrentadas pelo governo americano para isolar tecnologicamente a China podem ser aquilatadas em um estudo do caso Huawei por Dingding Chen e Wang Lei, respectivamente presidente e pesquisador do Intellisia Institute, resumido para a revista The Diplomat (2 de maio de 2022).

Desde a sua proposta de compra da 3Com Corporation, reprovada pelo Comitê de Investimento Estrangeiro nos Estados Unidos, do Departamento de Tesouro, em 2008, a Huawei nunca mais saiu do radar dos reguladores de Washington. Contratos e parcerias de PD&I com Google e AT&T foram cancelados. Mais recentemente, o governo americano tem insistido com australianos, japoneses e europeus para que excluam a Huawei de seus programas de compra de equipamentos e desenvolvimento de redes 5G.

O Departamento de Comércio passou a exigir das empresas estrangeiras fabricantes de semicondutores usuárias de software e hardware originários dos Estados Unidos aprovação prévia para vender seus à Huawei. A mesma repartição, em agosto de 2020, adicionou à sua lista de entidades chinesas 38 subsidiárias da Huawei em 21 países. Em setembro daquele ano, foi baixada a proibição de fornecimento ao conglomerado eletrônico chinês de chips que utilizam componentes americanos por qualquer entidade. A versão do projeto de Lei de Inovação e Competitividade dos Estados Unidos (USICA) aprovada pelo Senado em 2021 proíbe o Departamento do Comércio de retirar a Huawei da sua lista de entidades. Depois da invasão russa à Ucrânia, a Huawei, assim como outras empresas transnacionais, fica sujeita a sanções do governo americano se insistir em fazer negócios com a Rússia.

É impressionante a resiliência comercial da Huawei a despeito de tantos obstáculos made in USA, como assinalam Dingding e Wang. No ano passado, a empresa registrou faturamento total no valor de 636,8 bilhões de renmimbis, 30 por cento a menos que em 2020 (891,4 bilhões de renmimbis), porém com lucro 70 por cento superior ao do exercício anterior (113,7 bilhões contra 64,6 bilhões de renmimbis) — margem de lucro líquida de 17,9 por cento! (Enquanto o iuane é a ‘unidade de conta’, o renmimbi designa a moeda, principalmente no comércio internacional.)

Entre 2018 e 2021, a empresa saltou do quinto para o terceiro lugar mundial em investimentos em PD&I, nomeadamente em 5G e ‘nuvem’, e os autores creditam a expansão internacional da empresa, apesar das restrições do governo americano, justamente a esse grande volume de investimento. Até o fim do ano passado, a Huawei fechara 3 mil contratos de 5G nas áreas de manufatura, mineração, siderurgia, portos e saúde, entre outras. No terceiro trimestre de 2021, sua fatia de mercado global era a maior do mundo (28,7%). Em setembro do ano passado, a “Huawei Cloud” já havia lançado 220 serviços e 210 soluções, ocupando o quinto lugar em fatia de mercado do segmento ‘nuvem’ no mundo desde 2020, de acordo com o conceituado Gartner Group.

Mais de 700 cidades e 267 das 500 maiores empresas listadas pela revista Fortune escolheram a Huawei como parceira em seu processo de transformação digital. Ela é a fornecedora de sistemas operacionais de telefonia celular que mais cresce no planeta, já produz os próprios chips para a sua divisão de veículos autodirigidos e está conseguindo contornar o bloqueio americano por meio do desenvolvimento autônomo de energia digital, infraestrutura comercial para tecnologias de informação e comunicação (TICs) etc.

O caso Huawei comprova que, no atual estágio de forte interdependência tecnológica mundial, é mais fácil falar em “desacoplagem” do que praticá-la. E como fica o Brasil diante dessa ‘briga de cachorro grande’? Bem, essa é uma outra história, que fica para uma próxima vez.

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